Walmir
Rosário*
O
ano era 1977 – salvo melhor juízo – período em que retornei de
Salvador para Paraty. À época, a cidade já passava por uma
transformação, porém ainda mantinha seu espírito bucólico, em
que prevalecia a amizade, apesar da recém-chegada onda consumista. A
chegada do progresso era fato e todos queriam se beneficiar dele e de
seus efeitos, mas de forma honesta, no pensamento de alguns.
Entre
as atividades em ascensão a produção de cachaça era a mais
promissora delas, notadamente para quem conhecia do ofício, como
Eduardo Mello, o Eduardinho, fiel seguidor dos ensinamentos do seu
pai, Antônio Melo, produtor – por anos a fio – da cachaça
“Quero Essa”. Com a venda da Fazenda Boa Vista, os novos
proprietários – industriais paulistas, creio eu – fechou o
alambique, deixando órfãos uma legião de cachacistas apreciadores
do bom e precioso néctar da cana.
E
nada tirava da cabeça de Eduardinho continuar a desempenhar o mister
aprendido por anos e anos, plantando, colhendo, moendo cana e
destilando o seu caldo até chegar ao ponto ideal da excelente
cachaça. Não é de hoje que a cachaça de Paraty era cantada verso
e prosa Brasil afora, e a semelhança não é mera coincidência,
Paraty cidade, paraty cachaça, da boa, como convém aos apreciadores
mais entendidos.
Até
que chegou a oportunidade de ouro para o filho de Antônio Mello.
Após várias tentativas, eis que um dos bons produtores de cachaça,
o Ormindo, que fabricava a Coqueiro, pretendia se aposentar. Por
outro lado, Eduardinho, que se aposentara precocemente e
temporariamente, queria voltar a trabalhar, alambicar cachaça,
cachaça do mesmo padrão de qualidade da “Quero Essa”, ou da
“Vamos Nessa”, feita pelos seus avós. Era o caldo de qualidade,
no fogo adequado.
E
para “fechar o negócio”, marcamos uma Sexta-feira da Paixão
como o “Dia D”. Tudo de forma bem planejada numa das muitas
noitadas do Cana Verde. Cerca de meia-noite saímos da boemia com o compromisso
de estarmos de prontidão às 6 da manhã no cais e zarpar para o
encontro com o Ormindo, na Fazenda Engenho D'água.
No
horário aprazado, lá estávamos nós – eu, Eduardinho, seu irmão
Neguinho (Antônio Carlos) e Jorginho, este amigo e dono do barco que
nos levaria ao então alambique, cujo único meio de comunicação
era o marítimo. Apesar de cedo, já encontramos aberto o bar
“Bem-me-quer”, do Edmir, e encomendamos nossas provisões
(víveres) para a viagem. Do pedido constaram 24 latas de cerveja
Skol, carteiras de cigarros (ainda tínhamos esse péssimo vício) e
oito sanduíches de filé.
A
manipulação dos sanduíches foi prontamente rechaçada pela
cozinheira Madalena, que se recusou a cometer tal heresia:
– Comer
carne na Sexta-feira Santa é um sacrilégio e Deus vai castigar quem
fizer e comer – se desesperou Madalena.
Após
várias intervenções de Edmir, finalmente, muito a contragosto,
Madalena preparou os (mal)ditos sanduíches e rumamos para embarque
na Kombi (assim era chamado o barco de Jorginho, pela sua aparência
com o veículo fabricado pela Volkswagen). Após umas três cervejas
e dois sanduíches de filé, finalmente chegamos à fazenda de
Ormindo.
Negócio
fechado, comemoramos com mais um litro de Coqueiro e alguns mergulhos
no mar. Ao por do sol resolvemos rumar de volta para Paraty, fazendo
planos para a mudança do alambique e a nova produção.
Tudo
era festa, até notarmos os primeiros sinais de problema no motor da
Kombi “flutuante”, que começou a perder força. Diagnóstico
feito na hora, era a junta do cabeçote que tinha queimado. Alegres e
satisfeitos com a aquisição do alambique, não nos afobamos e a
cada cinco ou dez minutos desligávamos o motor até que esfriasse,
para navegarmos mais um bom pedaço.
Se
os problemas do barco não nos afligia, situação diferente se
passava na cidade, após constatado o nosso sumiço. No bar, Madalena
não se cansava de pregar os castigos de Deus com os hereges que se
atreveram a comer carne na Sexta-feira da Paixão, desafiando os
desígnios de Deus. Aos poucos, nossas famílias foram para caís,
apavoradas com a demora do regresso, a notícia “corria costa” e
as versões superavam o fato.
De
boca em boca, Deus tinha feito justiça e castigado os hereges, que
perderam-se no mar, naufragando com o peso dos pecados. No mar,
cumpríamos nosso “encargo” de navegar e parar para esfriar o
motor. Enquanto isso, o povo não arredava o pé do cais, para o
desespero de nossas famílias.
Persistentes,
nós sobreviventes de um quase acidente marítimo, fomos nos
aproximando da cidade. Para nossa alegria, já avistávamos as luzes.
Ligávamos o motor...logo em seguida desligávamos, e assim nos
aproximávamos do cais.
E
esse “calvário” continuou até as 21 horas, quando aportamos,
para o alívio e felicidade geral. Âncora ao mar, barco amarrado na
ponte, seguimos desfazendo a curiosidade alheia e a bronca das
mulheres. E fizemos o primeiro pit stop etílico no “Bem-me-quer”,
ponto de origem de toda a fofoca sobre nossas quase mortes no mar da
Baía de Paraty.
E,
juntos, pedimos ao Edmir uma Coqueiro e à Madalena mais um sanduíche
de filé para comemorar a nossa ressurreição!
*Apreciador
da boa cachaça.